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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Especificidades do cinema tâmil

O cinema indiano é reconhecido pelo mundo fora através da sua face mais visível, Bollywood, designação que engloba os filmes de pendor comercial produzidos na cidade de Mumbai (antiga Bombaim).
Estes filmes são normalmente falados na língua Hindi - descendente directa do Sânscrito - e ocasionalmente em Urdu (língua similar ao Hindi mas de influência persa e de uso marcadamente islâmico; nos filmes Bollywood, o Urdu está normalmente reservado às cenas musicais, poéticas e a diálogos de época).

No entanto, Mumbai não é a zona da Índia onde se produzem - nem onde se assistem - mais filmes. Essa zona é mais a Sul, no estado do Tamil Nadu, na cidade de Chennai, e mais concretamente no bairro de Kodambakkam. A esta indústria dá-se o nome muito apropriado de Kollywood.

O circuito de distribuição de filmes Kollywood está intimamente ligado às zonas do globo onde há diáspora tâmil. Daí que haja países - como Portugal ou o Brasil - onde simplesmente não haja filmes destes à venda.

Um outro factor que contribui decisivamente para esta relativa obscuridade do cinema tâmil é o facto de nem todos os filmes serem editados em DVD com legendas em Inglês.

Mas poderá ser a linguagem o único motivo pelo qual os estrangeiros e os restantes indianos não assistem a filmes tâmil? Decidi investigar.
E depois de ter visto alguns filmes e de me terem escapado umas quantas referências culturais (nomeadamente os sacrifícios de animais em festividades, costume que descobri ser pré-hindu na região), decidi ler sobre o assunto.

Percebi então que o que separa - em vários aspectos - a indústria do Sul da Índia da do Norte é a identidade cultural.
Espectadores do Norte e espectadores do Sul não se revêem nos filmes de uns e de outros e daí que haja tantos filmes tâmil com remakes hindi e vice-versa. Mais do que uma questão linguística, que seria resolvida com uma simples dobragem, trata-se de uma questão de identificação.

A nível étnico (e como me custa falar nestes termos!), a Índia era habitada originalmente pelos dravidianos, o povo que hoje habita maioritariamente o Sul da Índia e o Sri Lanka. Escritores da Antiguidade e historiadores modernos apontam a zona de África como terra-natal dos dravidianos. Até agora, essa teoria não pôde ser confirmada nem desmentida a nível científico.

A maioria dos historiadores defende a tese de uma invasão do território que é hoje a Índia por tribos arianas provenientes da zona onde fica actualmente o Irão.
Estes arianos, que devido ao seu poder bélico rapidamente terão subjugado os dravidianos, trouxeram consigo a cultura védica, que se tornou a dominante a nível cultural e religioso.
No entanto, foram também os arianos a apresentar à Índia um novo - e socialmente devastador - conceito: o das castas.

De acordo com a Wikipédia, "[o] sistema de castas (Varna) indiano é dividido de acordo com a estrutura do corpo de Brahma. As quatro principais castas são:
A cabeça (Brâmanes) representa os sacerdotes, filósofos e professores;
Os braços (Xátrias) são os militares e os governantes;
As pernas (Vaixás) são os comerciantes e os agricultores;
Os pés (Sudras) são os artesãos, os operários e os camponeses.


A "poeira sob os pés" não foram originados [sic] do corpo de Brahma, por isso não pertencem às castas, mas têm um nome: são os Dalit ou párias, chamados de intocáveis (a quem Mahatma Gandhi deu o nome de Harijan, "filhos de Deus")."

Pois reza a lenda - ou a História - que quando as tribos arianas consolidaram o seu domínio na região, implementaram este sistema com base num esquema de cores, digamos assim.
Os Brâmanes seriam os habitantes mais brancos (ou mais claros) e, à medida que o tom de pele de um cidadão fosse cada vez mais escuro, mais baixa seria a sua casta.

Aos indígenas, que compõem quase a totalidade dos habitantes do Tamil Nadu de hoje, foram atribuídas as castas mais baixas. Ou seja, quando os dravidianos se viram dominados pelos arianos, a sociedade tâmil passou a ser uma em que a maior parte da população era Dalit ou Sudra e em que um punhado de Brâmanes controlava as regras de conduta social e religiosa.

Avancemos alguns séculos.

Com o fim da colonização inglesa, os nacionalistas tâmiles começaram a sonhar com a criação de um estado independente, à semelhança do Paquistão, e com grandes reformas sociais. O cinema tornou-se o maior e mais eficaz instrumento de propaganda dos partidos nacionalistas.

No entanto, quando falamos em nacionalismo tâmil, há que ter em conta que não nos referimos a nacionalismo relativo a uma pátria (pan-)indiana, mas sim a uma nação tâmil. E isso é muito diferente da visão idílica de uma Índia multi-cultural unida que nos transmitem os filmes Bollywood (que são, afinal, um produto da classe política dominante e não das minorias étnicas ou, ainda menos, dos 166 milhões de Dalits do país).

Os partidos nacionalistas tâmiles usaram então o cinema para, através das canções e das manifestações culturais marcadamente tâmiles, celebrarem a língua e a identidade tâmil.
Do mesmo modo, o cinema serviu - e continua a servir - para expor os vícios e a corrupção de muitos Brâmanes que, abusando da sua posição de sacerdotes, extorquem dinheiro e favores às populações, sendo representados na tela de forma jocosa ou como verdadeiros vilões. Li inclusivamente sobre um filme em que a dada altura um grupo de Brâmanes viola uma jovem camponesa indefesa dentro de um templo.

A própria religião e os seus dogmas, por servirem os propósitos sociais da classe "estrangeira" dominante, são também criticados ocasionalmente no cinema tâmil.
A verdade é que, sem religião, desapareceria uma das maiores injustiças sociais da Índia: o sistema de castas.

Em 1925, surgiu no Tamil Nadu o chamado "Self-Respect Movement", um movimento que encorajava as castas mais baixas a lutar contra a opressão, nomeadamente através do casamento inter-casta, o "self-respect marriage". Este tipo de casamento civil, sem a presença de um sacerdote, era frequentemente introduzido nos filmes, mostrando às pessoas que era possível casar por amor, sem olhar à casta, e sem passar pelo processo de um casamento combinado (com base na casta, obviamente).

Esta questão, assim como a do direito das viúvas a voltar a casar ou a da distribuição da riqueza, aparecem ocasionalmente no cinema tâmil, a par com a projecção de cenas rurais que exultam o orgulho na pátria tâmil.

Toda esta propaganda e mensagens subliminares devem-se ao facto de toda a classe política do Tamil Nadu - toda, mesmo - trabalhar ou ter trabalhado a dada altura no cinema.

O objectivo deste texto - que elaborei com base em alguns sites tendenciosos de propaganda pró-tâmil e e pró-dalit mas também em publicações de pendor académico - é dar algumas luzes sobre aspectos cruciais do cinema e da identidade tâmil.

Espero ter ajudado. E se alguém tiver a bondade de me arranjar o livro Islamicate Cultures of Bombay Cinema talvez eu possa escrever um texto semelhante sobre a identidade islâmica no cinema Bollywood.

3 comments:

Rodolfo disse...

gostei muito do artigo; serve, sem dúvida, de introdução ligeira a um assunto nada ligeiro: a da Índia fracturada e que não canta com uma só voz.
obrigado.

Ibirá Machado disse...

Uau, incrível, Barbs! É mesmo um resumo, uma introdução, mas os temas foram muito bem abordados e fiquei com vontade de muito mais! Super obrigado :)

bárbara disse...

"Ligeira"? "Introdução"?
Tive tanto trabalho :P

Agora a sério, obrigada :)

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