Estes filmes são normalmente falados na língua Hindi - descendente directa do Sânscrito - e ocasionalmente em Urdu (língua similar ao Hindi mas de influência persa e de uso marcadamente islâmico; nos filmes Bollywood, o Urdu está normalmente reservado às cenas musicais, poéticas e a diálogos de época).
No entanto, Mumbai não é a zona da Índia onde se produzem - nem onde se assistem - mais filmes. Essa zona é mais a Sul, no estado do Tamil Nadu, na cidade de Chennai, e mais concretamente no bairro de Kodambakkam. A esta indústria dá-se o nome muito apropriado de Kollywood.
O circuito de distribuição de filmes Kollywood está intimamente ligado às zonas do globo onde há diáspora tâmil. Daí que haja países - como Portugal ou o Brasil - onde simplesmente não haja filmes destes à venda.
Um outro factor que contribui decisivamente para esta relativa obscuridade do cinema tâmil é o facto de nem todos os filmes serem editados em DVD com legendas em Inglês.
Mas poderá ser a linguagem o único motivo pelo qual os estrangeiros e os restantes indianos não assistem a filmes tâmil? Decidi investigar.
E depois de ter visto alguns filmes e de me terem escapado umas quantas referências culturais (nomeadamente os sacrifícios de animais em festividades, costume que descobri ser pré-hindu na região), decidi ler sobre o assunto.
Percebi então que o que separa - em vários aspectos - a indústria do Sul da Índia da do Norte é a identidade cultural.
Espectadores do Norte e espectadores do Sul não se revêem nos filmes de uns e de outros e daí que haja tantos filmes tâmil com remakes hindi e vice-versa. Mais do que uma questão linguística, que seria resolvida com uma simples dobragem, trata-se de uma questão de identificação.
A nível étnico (e como me custa falar nestes termos!), a Índia era habitada originalmente pelos dravidianos, o povo que hoje habita maioritariamente o Sul da Índia e o Sri Lanka. Escritores da Antiguidade e historiadores modernos apontam a zona de África como terra-natal dos dravidianos. Até agora, essa teoria não pôde ser confirmada nem desmentida a nível científico.
A maioria dos historiadores defende a tese de uma invasão do território que é hoje a Índia por tribos arianas provenientes da zona onde fica actualmente o Irão.
Estes arianos, que devido ao seu poder bélico rapidamente terão subjugado os dravidianos, trouxeram consigo a cultura védica, que se tornou a dominante a nível cultural e religioso.
No entanto, foram também os arianos a apresentar à Índia um novo - e socialmente devastador - conceito: o das castas.
De acordo com a Wikipédia, "[o] sistema de castas (Varna) indiano é dividido de acordo com a estrutura do corpo de Brahma. As quatro principais castas são:
A cabeça (Brâmanes) representa os sacerdotes, filósofos e professores;
Os braços (Xátrias) são os militares e os governantes;
As pernas (Vaixás) são os comerciantes e os agricultores;
Os pés (Sudras) são os artesãos, os operários e os camponeses.
A "poeira sob os pés" não foram originados [sic] do corpo de Brahma, por isso não pertencem às castas, mas têm um nome: são os Dalit ou párias, chamados de intocáveis (a quem Mahatma Gandhi deu o nome de Harijan, "filhos de Deus")."

Os Brâmanes seriam os habitantes mais brancos (ou mais claros) e, à medida que o tom de pele de um cidadão fosse cada vez mais escuro, mais baixa seria a sua casta.
Aos indígenas, que compõem quase a totalidade dos habitantes do Tamil Nadu de hoje, foram atribuídas as castas mais baixas. Ou seja, quando os dravidianos se viram dominados pelos arianos, a sociedade tâmil passou a ser uma em que a maior parte da população era Dalit ou Sudra e em que um punhado de Brâmanes controlava as regras de conduta social e religiosa.
Avancemos alguns séculos.
Com o fim da colonização inglesa, os nacionalistas tâmiles começaram a sonhar com a criação de um estado independente, à semelhança do Paquistão, e com grandes reformas sociais. O cinema tornou-se o maior e mais eficaz instrumento de propaganda dos partidos nacionalistas.
No entanto, quando falamos em nacionalismo tâmil, há que ter em conta que não nos referimos a nacionalismo relativo a uma pátria (pan-)indiana, mas sim a uma nação tâmil. E isso é muito diferente da visão idílica de uma Índia multi-cultural unida que nos transmitem os filmes Bollywood (que são, afinal, um produto da classe política dominante e não das minorias étnicas ou, ainda menos, dos 166 milhões de Dalits do país).
Os partidos nacionalistas tâmiles usaram então o cinema para, através das canções e das manifestações culturais marcadamente tâmiles, celebrarem a língua e a identidade tâmil.
Do mesmo modo, o cinema serviu - e continua a servir - para expor os vícios e a corrupção de muitos Brâmanes que, abusando da sua posição de sacerdotes, extorquem dinheiro e favores às populações, sendo representados na tela de forma jocosa ou como verdadeiros vilões. Li inclusivamente sobre um filme em que a dada altura um grupo de Brâmanes viola uma jovem camponesa indefesa dentro de um templo.
A própria religião e os seus dogmas, por servirem os propósitos sociais da classe "estrangeira" dominante, são também criticados ocasionalmente no cinema tâmil.
A verdade é que, sem religião, desapareceria uma das maiores injustiças sociais da Índia: o sistema de castas.
Em 1925, surgiu no Tamil Nadu o chamado "Self-Respect Movement", um movimento que encorajava as castas mais baixas a lutar contra a opressão, nomeadamente através do casamento inter-casta, o "self-respect marriage". Este tipo de casamento civil, sem a presença de um sacerdote, era frequentemente introduzido nos filmes, mostrando às pessoas que era possível casar por amor, sem olhar à casta, e sem passar pelo processo de um casamento combinado (com base na casta, obviamente).
Esta questão, assim como a do direito das viúvas a voltar a casar ou a da distribuição da riqueza, aparecem ocasionalmente no cinema tâmil, a par com a projecção de cenas rurais que exultam o orgulho na pátria tâmil.
Toda esta propaganda e mensagens subliminares devem-se ao facto de toda a classe política do Tamil Nadu - toda, mesmo - trabalhar ou ter trabalhado a dada altura no cinema.
O objectivo deste texto - que elaborei com base em alguns sites tendenciosos de propaganda pró-tâmil e e pró-dalit mas também em publicações de pendor académico - é dar algumas luzes sobre aspectos cruciais do cinema e da identidade tâmil.
Espero ter ajudado. E se alguém tiver a bondade de me arranjar o livro Islamicate Cultures of Bombay Cinema talvez eu possa escrever um texto semelhante sobre a identidade islâmica no cinema Bollywood.
3 comments:
gostei muito do artigo; serve, sem dúvida, de introdução ligeira a um assunto nada ligeiro: a da Índia fracturada e que não canta com uma só voz.
obrigado.
Uau, incrível, Barbs! É mesmo um resumo, uma introdução, mas os temas foram muito bem abordados e fiquei com vontade de muito mais! Super obrigado :)
"Ligeira"? "Introdução"?
Tive tanto trabalho :P
Agora a sério, obrigada :)
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