Realizado em 1951 pelo lendário actor, produtor e realizador Raj Kapoor, Awaara foi nomeado para o Grande Prémio de Cannes em 1953, foi alvo de um remake na Turquia, foi aplaudido por várias gerações de espectadores na Rússia e, diz-se, era um dos filmes preferidos do Presidente Mao.
Às vezes convém fazer este tipo de introduções grandiosas antes de falarmos de filmes que, sendo internacionalmente aclamados, são pouco divulgados por cá precisamente por serem indianos, com todo o estigma de "filmes lamechas em que de repente todos cantam e dançam" que isso acarreta.
Pois eu digo, o cinema indiano é maravilhoso, riquíssimo e se eu não soubesse já isso, certamente tê-lo-ia percebido com este fantástico Awaara!
Com uma narrativa que começa em flashback, Awaara leva-nos até uma cena decalcada directamente da mitologia védica. No Ramayana, a deusa Sita, esposa de Ram, é raptada pelo demónio Ravana e levada para a ilha de Lanka. Depois do resgate de Sita, os súbditos de Ram instigam-no a desconfiar da fidelidade da mulher, insinuando que esta deixou de ser casta às mãos do demónio.
Mais para apaziguar o povo do que quaisquer dúvidas reais que pudesse ter, Ram expulsa Sita do palácio real e força-a a viver no exílio na floresta, onde esta acaba por dar à luz dois gémeos (Lav e Kush), filhos de Ram.
A pureza de Sita acaba por vir a ser provada, mas Sita morre de seguida.
O já então adorável Sashi Kapoor enquanto Raj |
O rapto de Leela por Jagga deve-se ao facto deste ter sido injustamente condenado pelo juiz pelo crime de violação. Ainda que sem provas, o juiz agiu sob o pressuposto de que, sendo o pai e o avô de Jagga criminosos, este também o seria.
A intenção inicial de Jagga é violar Leela por vingança, mas ao ver que esta já se encontra grávida do marido, Jagga decide devolvê-la e deixar o juiz na dúvida sobre a paternidade da criança.
De acordo com a teoria do juiz, a genética acabaria por determinar que a criança, a ser filha de Jagga, fosse inevitavelmente criminosa. Pois o que aconteceria ao filho legítimo do juiz se este fosse forçado a viver na pobreza e no meio de delinquentes caso o pai o renegasse?
E é esse o mote de Awaara (que significa "o vagabundo", numa homenagem declarada à famosa personagem de Charlie Chaplin).
Expulsa de casa, Leela acaba por ficar a viver sozinha com o filho numa favela de Mumbai (metáfora da selva do Ramayan?), trabalhando de sol a sol para assegurar que este vai à escola de forma a poder crescer para se tornar advogado, depois magistrado, e por fim juiz.
Na escola, o pequeno Raj tem como única amiga a simpática Rita, uma menina abastada, ela própria filha de um juiz, que oferece a Raj uma amizade pura e incondicional, sem olhar ao facto de este ser pobre.
Vítima de constantes ataques por parte dos restantes meninos da favela que, ao contrário dele, não frequentam a escola, Raj assiste ao declínio da mãe, que cada vez tem menos meios para sustentar a família. Raj toma a iniciativa de trabalhar como engraxador fora do horário escolar para ajudar a pagar as propinas e a comida.
Devido aos atrasos nas mensalidades, Raj é expulso da escola, vendo-se assim privado da última oportunidade que tem de ter o futuro com que a mãe sonha.
Traindo os seus princípios, Raj acaba por ser preso quando tenta roubar um pão para alimentar a mãe, que está literalmente a morrer de fome.
Inicia-se então uma vida de golpes e pequenos furtos que Raj vai cometendo sob a alçada do seu novo auto-proclamado tutor, o bandido Jagga (o mesmo que anos antes raptara a sua mãe).
Já adulto, e depois de mais uma temporada na prisão, Raj reencontra Rita casualmente. Apesar da vergonha que sente por ser pobre e ladrão, Raj revela a Rita a sua identidade, naquela que é uma das cenas mais enternecedoras do filme.
As personagens de Raj e Rita são interpretadas respectivamente por Raj Kapoor e por Nargis, que chegaram a filmar 16 filmes juntos, tendo sido também um casal na vida real. Todo o filme está cheio de toques ternurentos e olhares cúmplices entre os dois, fazendo de Awaara um filme invulgarmente humano no panorama castrador e contido no que diz respeito à parte física do amor a que o cinema indiano nos habituou.
Numa das cenas musicais mais memoráveis do filme, Rita pede à lua que afaste o olhar enquanto faz amor com Raj.
A personagem de Rita é, aliás, uma mulher cheia de iniciativa. É também ela que pede Raj em casamento, não o contrário.
A tragédia de Awaara está no pai de Raj que, sem que este o saiba, é nomeado tutor de Rita quando esta fica orfã e, mantendo-se fiel ao seu preconceito sobre a genética, opõe-se totalmente à relação, achando que Raj apenas quer usar Rita como fonte de rendimento.
O juiz apenas vê em Raj um pobre e um ladrão e nunca um fruto das circunstâncias.
Mas Raj quer genuinamente abandonar a carreira de ladrão e vê em Rita a sua salvação. Tal está magnificamente retratado na mais famosa cena musical de Awaara, quando Raj sonha com o chamamento de Rita, é atormentado por demónios que o querem manter no inferno e, por fim, é conduzido por Rita até à ascensão e à paz espiritual.
Esta cena é provavelmente inspirada na de A Pretty Girl is Like a Melody, do filme de 1936 The Great Ziegfeld (o nosso olheiro Linus é que detectou) e a música é baseada num clássico árabe chamado Ala Balad El Mahbub.
A mensagem final implícita em Awaara é a de que o ambiente, e não só a genética, determina o comportamento das pessoas e que as crianças devem ser preservadas e estimadas, ao invés de serem condenadas a falhar a priori com base nas suas origens sociais.
Ao longo do filme, são também feitas críticas declaradas aos bandidos reais dos tempos modernos: os capitalistas, os especuladores e os agiotas. Não necessariamente o tipo de ar enxovalhado que não tem onde cair morto.
Pela mensagem social, pela sublimação do amor e pelas belíssimas imagens que proporciona, Awaara é um filme perfeito.
A mensagem final implícita em Awaara é a de que o ambiente, e não só a genética, determina o comportamento das pessoas e que as crianças devem ser preservadas e estimadas, ao invés de serem condenadas a falhar a priori com base nas suas origens sociais.
Ao longo do filme, são também feitas críticas declaradas aos bandidos reais dos tempos modernos: os capitalistas, os especuladores e os agiotas. Não necessariamente o tipo de ar enxovalhado que não tem onde cair morto.
Pela mensagem social, pela sublimação do amor e pelas belíssimas imagens que proporciona, Awaara é um filme perfeito.
8 comments:
É por histórias assim que sempre que oiço a frase "a minha vida dava um filme indiano" peso "só te acontecem desgraças?".
É verdade, ainda aí muita gente a invocar o cinema indiano em vão! É muito irritante...
A propósito de desgraças que não acabam, vê lá este: http://grandmasala.blogspot.com/2010/02/mother-india.html
Parabéns barbara, pelo lindo texto.
Como eu gosto de Awaara!!!!!! e ainda por cima, tem o meu mais que tudo, sashi kapoor, ainda criança.
Obrigada!
O Sashi Kapoor é tudo de bom ;)
O seu post só tem um problema: disse tudo o que eu queria dizer. O que restou? :)
Eu tenho um sério problema, que é o de não gostar dos filmes que vejo quando estou de mau humor. Eu não estava muito bem quando vi Awaara, mas aprendi que um filme realmente bom consegue quebrar qualquer barreira, pois consegui gostar dele.
Um dos que mais me encantou foi o pequeno Raj. Aqueles olhinhos grandes, a cena dele dizendo na escola que tinha de trabalhar...tudo tão bonito! Coisa de família, pelo jeito. Mas quem me conquistou mesmo foi o Raj Kapoor. Eu só conseguia olhar para ele e pensar nele enquanto assistia ao filme. Foi o meu primeiro filme dele e também meu primeiro da Nargis, e comentei com o Pedro sobre o quanto eu pouco estava me importando com a Nargis enquanto assistia ao filme. Eu estava tão envolvida por Raj que não conseguia olhar para a Rita, falo sério. Ele me emocionava e cativava muito! Há algo naqueles olhos. Não entendo existir alguém tão bom quanto Raj Kapoor. Como me encanta...ai, ai. *suspiros*
A mensagem do filme é belíssima. Eu ficava impressionada por ver o quão fácil é cair e o quão difícil é se levantar. Um roubo de pão e o menino era sempre visto como vagabundo ; uma tentativa de ser bom e o mundo fazia de tudo para que ele continuasse a ser como era. Por que não deixavam que ele tentasse? Por que não queriam que ele fosse bom? Por que as pessoas são tão idiotas? Por que o Raj não merecia uma chance? Quem ele pensava que era para sair dizendo quem era bom ou mau? Por que aquele pai dele era tão idiota? Não dava para ver a linda pessoa que era o Raj? A Rita não o viu? Por que não conseguiam?
Vou parar por aqui porque quase comecei a chorar lembrando dos olhos sinceros do Raj. Báh.
Carolzinha... tu tens sempre coisas interessantes e bonitas (ou cómicas tb) a dizer, independentemente do que tenha sido dito antes.
Foi o meu primeiro filme com o Raj Kapoor e tb fiquei apaixonada.
Gente, eu fico mal lembrando do Raj x)
Ihihih!
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