Este é o tipo de filme que apenas poderia ser produzido na (diversificada) India.
Que outra cinematografia poderia pegar numa situação em que boa parte das suas classes sociais vivem no limiar da probeza e paralelamente possuir uma indústria de entretenimento forte o suficiente para ser capaz de dramatizar esse assunto numa obra para o grande público?
Este é o final de uma trilogia de Madhur Bhandarkar, que já anda à coca de temas menos explorados pelo cinema Hindi desde Chandni Bar, em que se explorava a vida das raparigas que ganham a vida nos bares. Page 3 e Corporate são as primeiras partes do triptico, e há quem diga que este é o mais fraco, apesar de ter ter ganho o prémio para melhor director. Espero que assim seja, já que ver dois filmes melhores que este é sempre algo que me pôe em pulgas.
O quadro maior do filme é constítuido por vários trechos de narrativa colados alternadamente, que segue de maneira testemunhal os incidentes das personagens que formam a comunidade que vive e sobrevive à conta do sacana do semáforo. O argumento não me parece ter sido mais do que a descrição das cenas intercaladas de forma a estabelecer uma lógica de espaço temporal.
Sempre achei que este esquema de cinema, habitualmente, origina eixos desconexos e que apenas se sustêem a si próprios, esquecendo o fio condutor central. Existem tantos exemplos que qualquer um de vós se consegue lembrar de um sem ajuda. No entanto, Bhandarkar safa-se bastante bem e não me parece que seja pela qualidade do argumento, mas sim porque devia ter o filme montado na cabeça, o que me faz pensar que devo procurar os seus outros filmes. Esta vontade, parece-me ser o melhor elogio que se pode dar a qualquer criador, o que por sua vez me fez raciocinar mais atentamente no que se pretendia atingir com esta obra.
Andam por aqui alguns temas interessantes. Um que me chamou particularmente a atenção foi o de um miúdo cujo sonho é o de aclarar a cor da pele e para isso despediça todo o dinheiro que ganha a pedir para comprar um creme que publicita milagres que quatro semanas. A temática acerca da cor da pele, que está latente na sociedade Indiana, é conseguida com um certo vagar súbtil, resultando numa cena em que não deixa dúvidas quanto à posição dos criadores acerca da questão.
Outra, é o de um pedinte com um bom grau de educação que percebeu que a vida que leva lhe dá maior rendimento do que empregado num qualquer trabalho para o qual estaria capacitado.
Pederastia, prostituição, tráfico e consumo de droga, orfãos de cheias largados a si mesmos, deslocalização de populações a morrer de fome e assasinatos por contrato são temas que, directamente ou em segundo plano, também estão presentes.
A hierarquia mafiosa que se estrutura em pirâmide, consegue descrever a forma como os que recolhem a maior parte dos beneficios desta economia paralela são aqueles que estão no topo, utilizando todo o tipo de imigrantes com algum tipo de deficiência fisica, engajados das aldeias pobres, para atingir o poder, que então se espraia e confude com os varios nivéis de corrupção, por entre autoridades condescendentes e homens de negócio sem escrúpulos.
A história poderia ser resumida pela frase “anda meio mundo a enganar o outro meio”, mas seria demasiado simplificador. Além disso, este é também um filme de faces. Faces sujas (que valeram um prémio para a caracterização), cujos olhos não vêem além do presente, que dependem umas das outras como familia, de pessoas que comem com as mãos, mentem, discutem e morrem. Várias vezes, reparei que olhava para as suas expressões e ouvia as palavras sem prestar atenção às legendas, compreendendo o que se estava a passar. A aparente desagregação da narrativa contribui para o resultado, o resultado constrói-se a partir da soma das partes.
O enredo gira em redor dos semáforos de uma ficticia rua de Mumbai e pretende retratar a vida daqueles que subsiste na economia paralela criada por um lugar em que o simples esperar por uma luz verde produz uma multitude de esquemas que suportam a sobrevivência dos indigentes e alimentam a ganância da mafia local, onde o futuro é uma miragem reservada aos multiplex. Sem grande exagero, conheci mais em duas horas sobre o que está para lá da superficie da sociedade Indiana, que em duas semanas a ler o Indian New Times.
Mais uma vez, Sameer consegue trancrever de forma resumida os intuitos emocionais da história, por entre as melodias de Raju Singh e Shamir Tandon, que se encaixam bem nos momentos em que surgem, nunca de forma impositória, em que o melhor exemplo será referir que a única música realmente alegre está presente durante um casamento.
A banda-sonara (Raju Singh) é de primeira água e os cenários tão conseguidos que nem se dá por eles.
É também a segunda vez que devemos falar positivamente de um Kunal Khemu, dois anos após Kalyug, mais senhor de si, em que se nota o amadurecimento do rapaz, a acompanhar futuramente. No entanto, deve-se dizer que as interpetações de todo o elenco tira algum do seu valor, uma vez que todos cumprem muito bem o retrato de cada um dos elementos que formam o organismo humano. Assim de repente, não me lembro de outro filme Hindi em que existissem tantos personagens e em que todos fossem representados bem acima da média.
É o primeiro filme da produtora Percept que vejo e devo dizer que fiquei positivamente impressionado com a qualidade geral deste filme de baixo orçamento, em que as limitações foram aproveitadas para transmitir a vida da rua através de sequências, nem todas bem conseguidas, como a do casal rico cujos diálogos são excusados e sem interesse, e em que a linguagem dura de rua (Bambaiya) é utilizada como técnica para captar a realidade das margens da cidade.
No geral, Traffic Signal resulta bem e sem alaridos acaba por conseguir ser um bom filme, que vale a pena ver, nem que seja para abrir o olho da próxima vez que formos interpelados com alguma conversa da tanga, nas ruas da cidade mais próxima de si..
Admito que, no fim de tudo, da emoção da história fique a pairar apenas ao de leve e penso que seria um dos objectivos dos criadores que se saisse da sala com uma diferente perspectiva em relação à sociedade em que habita. Tal, não foi conseguido. Não se consegue acertar todas, é aqui verdade, no entanto a sensação de termos ido do principio ao fim sem ter dado por ter feito a viagem é tal, que não deve passar muito tempo sem que eu gaste mais duas horas da lâmpada do projector para ver Silsila (que recebeu o nome à conta dos pais gostarem do filme) e os que gravitam à sua volta, assim como o fazem em volta daquela árvore de ferro cujos frutos guiam carros.
É como voltar áquela esquina onde há aquele café, onde sabemos que vamos encontrar alguém conhecido que fez parte do nosso passado. e este é o sentimento com que este filme me deixou...
Fiquem pois com a minha canção favorita da coisa...
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