Já há muito tempo que me apetecia escrever sobre este filme aqui no Grand Masala. É que A Passage To India é-me muito caro. Marca o meu primeiro encontro com a Índia no Cinema.
Era eu ainda um simples adolescente a descobrir o que queria dizer o Cinema, a internet era ainda também um sonho por sonhar e o acesso a bom cinema levava-me a vasculhar tudo que era clube de video da minha zona habitacional em busca "daquele" filme que eu tinha lido nalgum livro ou revista, ou visto de relance num qualquer documentário televisivo. Os grandes realizadores fascinavam-me e David Lean mais que ninguém. Autor de épicos já lendários, ver Lawrence of Arabia ou Doctor Zhivago era para mim quase como ter masterclasses privadas em como se fazer bom cinema. Está claro que eu tinha que arranjar maneira de conseguir ver A Passage To India, o seu derradeiro filme filmado em 1984, culminando uma carreira já de si brilhante.
Lá o consegui arranjar num clube de video perto de minha casa (para grande pesar do resto do agregado familiar que quase nunca aprovavam as minhas escolhas) e vi-o de fio a pavio fascinado com um Lean mais acessível, mas sempre genial que conseguia tirar dos actores "aquelas" performances que mais ninguém na altura conseguia, um Lean que ainda conservava o talento de criar magia em celulóide. Baseado na que é talvez a maior obra de E. M. Forster, esta brilhante adaptação de Lean pega no original e dá-lhe muita vida, muita cor e ainda lhe sobra tempo para lhe dar um cunho muito pessoal ao introduzir cenas que, embora não fizessem parte do livro, ajudam e muito à caracterização das personagens.
A trama é longa e complexa, mas pode resumir-se ao seguinte: moça inexperiente britânica viaja para a Índia para aí se encontrar com moço experiente britânico que, por acaso até é o Magistrado Local da terra onde lá vive - Chandrapore. Acompanhada da mãe do mesmo, estas duas english roses vão sofrer experiências que as vão marcar tanto pessoalmente, como espiritualmente. Forster tece as linhas desta trama como se de um exímio jogador de xadrez se tratasse, colocando as suas personagens em situações que as vão fazer confrontar com outras peças do tabuleiro e, por vezes, com elas próprias. O desenlace adivinha-se surpreendente e com tonalidades trágicas logo à partida. A atenção fica ao rubro logo nos primeiros minutos.
A Passage To India é também dos tratados sobre a arrogância dos anos do British Raj mais corrosivos de que há memória, onde Forster nos mostra as verdadeiras almas de dois povos que nunca poderiam ser compatíveis. A ajudar ao retrato, temos actores excepcionais a darem vida a personagens igualmente excepcionais que, ao longo do filme, vão passar por arcos dramáticos muito pronunciados. Vénias então a Judy Davis (a moça), a Peggy Ashcroft (a mãe do moço), mas principalmente a Victor Banerjee, que aqui representa o papel de um médico local que se vai tornar o centro de toda a trama. Destaque também para Alec Guinness, um habitué de Lean, representando um brahmin que ajuda a dar o toque exótico à coisa. E falando em exotismo, não podemos esquecer a música de Maurice Jarre, também ele um colaborador habitual de Lean desde Lawrence of Arabia, que vai aqui compôr uma banda-sonora que consegue a proeza de juntar as sonoridades de uma Inglaterra dos anos 20 e de uma Índia milenar.
O cerne da acção vai passar-se, no entanto, não em Chandrapore, mas nas redondezas: nas grutas de Marabar. E os sinais são-nos mostrados desde o início do filme, seja em pinturas que Judy Davis vê na Agência de Viagens onde vai comprar as titulares "passagens de barco para a Índia", seja ao longe, vislumbradas pela mesma Davis assim que chega a Chandrapore. Tudo nessas famigeradas grutas, donas de "um estranho eco", parece atraí-la. E é na literalmente fantástica viagem até elas (de comboio entre as montanhas e depois de elefante até às grutas, lembrando os antigos marajás!), organizada por Banerjee que tudo vai acontecer. É que esse "estranho eco" não é realmente um eco normal. Lean aproveita a metáfora sonora do eco e a visual das grutas para entrar na psique das personagens de uma maneira que nunca mais se esquece. E que deixa marcas. Em nós e, principalmente, nos personagens. É a lei da causa/efeito no seu expoente máximo.
Agora imaginem tudo isto filmado com o sentido de grandeza épica de Lean. É realmente de cortar a respiração. No entanto, não posso terminar este humilde texto sem deixar de voltar a referir a personagem interpretada por Peggy Ashcroft, que funciona aqui como uma espécie de consciência moral da história e onde se vê claramente que Forster utiliza para dar voz e corpo a muitas das suas pessoalíssimas opiniões sobre a ocupação da Índia pelo Império Britânico. E é da sua boca que sai a frase que resume todo o filme: "India forces one to come face to face with oneself". E para mim, isto é a Índia.
2 comments:
Lindo texto. Confesso que ainda não vi esse filme, e pensar que ele foi lançado quando eu tinha menos 1 ano de idade...
Este filme é para mim fundamental e possui aquele raro dom de melhorar em cada vez que o vejo.
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